O dia 18 de outubro marcou a conclusão dos trabalhos da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do Congresso Nacional sobre o assalto fascista a Brasília em 8 de janeiro, apenas uma semana após a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT). Sua conclusão contundente foi que o ex-presidente Jair Bolsonaro foi “intelectual e moralmente” responsável pelo ataque, bem como por uma “associação criminosa, violência política, abolição violenta do Estado democrático de Direito e golpe de Estado.”
Bolsonaro foi indiciado juntamente com mais de 60 pessoas, metade das quais pertencentes às Forças Armadas, incluindo o ex-comandante do Exército, general Freire Gomes, e o comandante da Marinha, almirante Almir Garnier, que, de acordo com o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, tenente-coronel Mauro Cid, concordou ofereceu a Bolsonaro apoio da Força para uma tomada do poder.
As acusações não têm consequências práticas imediatas, tendo sido encaminhadas pelo Congresso a uma série de outros órgãos, incluindo a Procuradoria Geral da República (PGR) e a Polícia Federal. No entanto, o relatório, por si só, constitui um elemento crucial no aprofundamento da crise do regime burguês no Brasil. Apesar de todos os seus esforços, a coalizão governista do PT no Congresso não conseguiu esconder de milhões de brasileiros que uma vasta conspiração foi colocada em movimento, envolvendo dezenas de autoridades do alto escalão do aparato de segurança. E, apesar das mentiras do partido sobre uma vitória decisiva em 1º de janeiro e nos meses após o início da transição de governo, essa conspiração estava totalmente viva e capaz de tomar a capital.
O ataque viu milhares de apoiadores fascistoides de Bolsonaro invadirem as sedes dos Três Poderes – o Congresso, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Palácio do Planalto – após repetidos apelos de Bolsonaro para que seus apoiadores se manifestassem em favor de suas falsas alegações de que sua derrota nas eleições gerais de outubro de 2022 havia sido fruto de fraude eleitoral. A multidão foi escoltada e guiada de diversos pontos de encontro na capital, incluindo o Quartel-General do Exército, até a Praça dos Três Poderes, onde se concentram os prédios atacados, e onde algumas dezenas de policiais e soldados os receberam de braços abertos ou foram instantaneamente dominados.
Embora obviamente emulando a tentativa de golpe liderada pelo ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, um ano antes, com a invasão do Congresso dos EUA, os seguidores de Bolsonaro também estavam seguindo sinais claros de que os militares apoiariam um golpe contra o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Isso foi expresso de forma mais clara em um relatório militar em 9 de novembro de 2022 sobre a segurança das urnas eletrônicas, que concluiu que uma fraude “não poderia ser descartada”. Essas alegações, feitas incessantemente por Bolsonaro durante todo o seu mandato, contrariavam relatórios anteriores dos próprios militares, que nas décadas anteriores de uso das urnas eletrônicas participaram de inúmeros “hackathons” patrocinados pelo TSE, sem produzir qualquer evidência de que as urnas eletrônicas eram passíveis de fraude.
Depois do anúncio dos resultados em 30 de outubro, e enquanto Bolsonaro se recusava a reconhecer a derrota, os apoiadores imediatamente começaram a montar acampamentos em frente a quartéis em todo o país, exigindo a tomada do poder pelos militares. Os acampamentos foram defendidos pelos militares como uma manifestação de “liberdade de expressão”, ao mesmo tempo em que os comunicados de imprensa do Alto Comando condenavam as medidas “autoritárias” do STF contra aqueles que alegavam fraude eleitoral. Pouco antes do final do ano, em 24 de dezembro, um apoiador de Bolsonaro foi pego tentando explodir um caminhão-tanque no aeroporto de Brasília, com o objetivo de provocar e legitimar o uso de poderes emergenciais.
Como ponto alto de tais conspirações, o ataque fascista à capital provocou uma tempestade política no país. Ele ocorreu apenas uma semana após a terceira posse presidencial de Lula em 1º de janeiro, um evento altamente orquestrado no qual o PT proclamou uma vitória decisiva sobre a extrema direita e o início de uma nova era para a democracia burguesa no Brasil. Lula, que estava visitando uma região atingida por enchentes no estado de São Paulo, recusou-se a usar os poderes presidenciais para ordenar uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), na qual os militares assumiriam a segurança na capital, por medo de perder o controle da situação. O governo então decidiu por uma Intervenção Federal nas forças de segurança do Distrito Federal, o que durou até o fim de janeiro.
Desde o início, a convocação da CPMI, que reúne senadores e deputados, foi fortemente combatida pelo governo do PT. Opondo-se a Bolsonaro desde sua campanha eleitoral de 2018 do ponto de vista da defesa do Estado capitalista – e criticando Bolsonaro por comprometer os interesses do capitalismo brasileiro no exterior – o PT procurou lidar com a fração fascistóide da burguesia nacional cedendo poderes sigilosos, típicos de um Estado policial, ao Ministro do STF Alexandre de Moraes. Logo após os ataques de 8 de janeiro, o governo resistiu aos pedidos por uma CPMI, insistindo que uma investigação sigilosa conduzida por Moraes era suficiente.
A CPMI só foi iniciada depois que a oposição de extrema-direita reuniu apoio suficiente no Congresso para tentar acusar falsamente o Executivo de organizar os ataques. O governo, então, deu início a manobras parlamentares para garantir a seus representantes a maioria na comissão. A sua marca registrada foi a dependência exclusiva de informações já disponíveis publicamente por meio de vazamentos ou relatórios oficiais da Polícia Federal. As audiências foram restritas ao testemunho de figuras como o tenente-coronel Cid, mantido em prisão preventiva por ordem do Ministro Moraes, e que já estavam negociando acordos de delação. As informações que não foram disponibilizadas publicamente por Moraes só puderam ser acessadas pelos membros da CPMI em uma “sala-cofre” rigorosamente monitorada, sob a proibição de que os parlamentares fizessem qualquer reprodução do material.
Durante todo o processo, a principal preocupação do governo foi apresentar os suspeitos como isolados do aparato de segurança e, como tais, agindo como indivíduos, e não como uma expressão da crise do Estado capitalista.
O relatório final da CPMI, redigido pela senadora Eliziane Gama, da base do governo, afirma precisamente que, apesar dos 60 indiciados, incluindo Bolsonaro, “não há nada para ser visto” na investigação. E conclui: “Contra os golpistas, prevaleceu a solidez do nosso arranjo institucional”, apontando para “a ação saneadora dos setores das forças de segurança policiais que não se deixaram contaminar pelo discurso ideológico do bolsonarismo” e para “a postura constitucional das Forças Armadas”.
Em outras palavras, os militares brasileiros, que a CPMI admite estarem profundamente envolvidos em uma conspiração para suprimir a democracia menos de quatro décadas após a dissolução oficial de sua ditadura sangrenta de 21 anos, apoiada pela CIA, devem ser enaltecidos como os principais defensores da democracia.
Gama não deixa dúvidas de que o governo vê o relatório da CPMI como um meio de “encerrar o caso” sobre a conspiração golpista e retomar a normalidade: “Esse relatório é a demonstração real da vitória da democracia contra o fascismo, o fundamentalismo e a tentativa de usurpar e retirar direitos que nós levamos anos a fio através de sangue e suor, que é o nosso Estado democrático de Direito”.
Essa tentativa de ignorar a realidade, contrariada pelo fato de que os principais membros da cadeia de comando militar estavam preparados para seguir Bolsonaro no estabelecimento de uma ditadura, está enraizada nos interesses de classe representados pela coalizão liderada pelo PT. O governo Bolsonaro e seus planos para derrubar a democracia burguesa são produto da crise mundial do capitalismo, que está dando origem a guerras, a políticas de austeridade para financiá-las e ao crescimento da extrema direita e de medidas draconianas para impô-las em todos os países. O PT, completamente comprometido com a preservação do domínio capitalista, teme uma reação da classe trabalhadora contra o próprio capitalismo – a fonte da austeridade, da guerra e da ditadura – infinitamente mais do que teme o fascismo.
Esses interesses de classe estão por trás da tentativa covarde, e quase patética, de negar a crise terminal da democracia burguesa no Brasil, expressa em outra seção do relatório. Ele afirma: “Seria uma tragédia para a democracia confirmar-se, por exemplo, que ao menos 6 dos 16 integrantes do Alto Comando do Exército, teriam sido a favor da leitura do artigo 142 da Constituição como norma autorizativa a uma intervenção militar no país e/ou a favor da decretação de uma GLO (Garantia da Lei e da Ordem), durante discussões internas do generalato”.
O fato de a CPMI ter sido encerrada sem qualquer tentativa de investigar as alegações apresentadas em seu próprio relatório sobre as implicações “trágicas” de “pelo menos” um terço da alta cúpula militar apoiar um golpe expõe o próprio governo do PT como cúmplice da extrema direita e dos militares.
O relatório também deixa bem claro que o governo do PT e a classe dominante brasileira como um todo estão cientes de que as contínuas revelações decorrentes dos impactos secundários dos ataques de 8 de janeiro estão, na verdade, alimentando a oposição em massa que o governo está tentando reprimir. Ao mesmo tempo em que glorifica os militares como a espinha dorsal da democracia, o relatório estabelece as bases para uma expansão maciça dos poderes do Estado.
O relatório começa com uma análise política do quadro mais amplo da conspiração golpista no Brasil, na qual denuncia “golpes da esquerda”, sem especificar quais, e o “extremismo de esquerda”: “Os golpes modernos — à esquerda e à direita — não usam tanques, cabos e soldados. Começam por uma guerra híbrida, psicológica, à base de mentiras, de campanhas difamatórias, da propaganda subliminar, da disseminação do medo, da fabricação do ódio.”
O documento, redigido e aprovado pelo PT e seus aliados na pseudoesquerda, incluindo o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), prossegue em uma linguagem chauvinista que espelha a de Bolsonaro e dos fascistas: “O golpe avança pela apropriação dos símbolos nacionais. Os guerrilheiros do caos desvirtuam a Bandeira Nacional (...) fazem do Hino Nacional a sua música, como se o Ouviram do Ipiranga não fosse a trilha sonora de um país marcado pela diversidade, pela pluralidade e pela liberdade.”
Depois de condenar o “cansaço” com a democracia liberal, o relatório acrescenta: “No entanto, é preciso observar que a crise de prestígio da democracia liberal não é apropriada apenas pelos movimentos de extrema direita. O processo de manipulação dos prejudicados com o processo de mundialização tem também atores à extrema-esquerda, em que também se demonstra que o descontentamento material é terreno fértil para militantes antidemocráticos de todo o espectro ideológico”.
O relatório argumenta que o “extremismo”, supostamente um produto da comunicação de massa possibilitada pela Internet, deve ser combatido por meio da censura. Ele afirma que: “o atual estado da arte do funcionamento do ecossistema digital brasileiro é um risco ao nosso Estado Democrático de Direito, razão por que viola as balizas constitucionais mais profundas.”
Essa conclusão reacionária representa o projeto de um estado policial. A implicação inevitável de tais concepções é que o fascismo – que é equiparado ao “extremismo de esquerda”, ou seja, ao socialismo – deve ser combatido por meio de censura e repressão em massa.
O resultado da CPMI deixa claro que a classe trabalhadora brasileira somente pode enfrentar a crescente ameaça da ditadura e do fascismo por meio de uma ruptura com o PT e todos os partidos de pseudoesquerda comprometidos com a preservação da ordem burguesa apodrecida. Essa luta deve ser orientada contra todo o sistema capitalista, fundindo-se com a crescente luta de classes e oposição à guerra em todo o mundo.