Publicada originalmente em 3 de janeiro de 2024, esta é a primeira parte da Declaração de Ano Novo do WSWS. A segunda parte foi publicada em 15 de janeiro, a terceira parte em 16 de janeiro e a quarta e última parte em 22 janeiro 2024.
1. O ano novo de 2024 começa sob condições de escalada da crise internacional. No início do milênio, existiam previsões otimistas de que o capitalismo mundial, sob a ordem benevolente e “unipolar” dos Estados Unidos, estava entrando em uma nova época de paz e prosperidade universais. Com a dissolução da União Soviética, os demônios do “curto século XX” – acima de tudo, os espectros do marxismo e da revolução socialista – haviam sido enterrados de uma vez por todas. Wall Street gritou para o mundo: “Meu nome é Capitalismo, rei dos reis. Contemplem as minhas obras, ó poderosos, e desesperai-vos!”. Porém, foi necessário menos de um quarto de século para essa arrogante ostentação se dissolver em um colossal desastre. O novo século do triunfante capitalismo provou ser o mais curto de todos. As contradições fundamentais do sistema capitalista mundial que produziram as guerras e revoluções do século XX não foram resolvidas e continuam sendo as forças motrizes da intensificação das convulsões econômicas, sociais e políticas que estão varrendo o mundo.
2. Os horrores produzidos pelos cataclismos do século passado estão sendo reencenados. O genocídio está sendo adotado abertamente como um instrumento de política de Estado. A tentativa do regime israelense de exterminar o povo palestino em Gaza prossegue com o apoio aberto dos Estados Unidos e de seus aliados imperialistas, que têm proclamado repetidamente sua oposição a um cessar-fogo. Uma área urbana densamente povoada está sendo submetida ao impiedoso bombardeio que já matou mais de 25 mil pessoas, a maioria mulheres e crianças, nas primeiras dez semanas de guerra.
3. O primeiro-ministro fascista de Israel, Benjamin Netanyahu, declarou em sua mensagem de Ano Novo que o ataque irá continuar durante todo o ano de 2024. Israel não conseguiria continuar a guerra por mais uma semana, muito menos por um ano, sem o apoio financeiro e militar ilimitado dos Estados Unidos e de seus co-criminosos da OTAN. O presidente dos Estados Unidos, o secretário de Estado, inúmeros outros altos funcionários do governo e o alto escalão do Pentágono viajam entre Washington e Tel Aviv, supervisionando as operações israelenses e participando da seleção dos alvos dos bombardeios. O envolvimento direto de funcionários dos EUA e da OTAN em ações assassinas terrestres em Gaza é conhecido.
4. A sanção e a participação no genocídio representam mais do que as usuais violações de invocações dos direitos humanos pelas potências imperialistas. O genocídio em Gaza confirma em um nível mais elevado a tendência observada pela primeira vez por Lenin em meio à Primeira Guerra Mundial, há mais de um século. Ele escreveu em 1916: “A diferença entre a burguesia imperialista democrática-republicana e a reacionária-monarquista é obliterada porque ambas estão apodrecendo vivas...”. Substituindo o termo “reacionário-monarquista” por “fascista”, a análise de Lenin é inteiramente válida como descrição dos regimes imperialistas atuais.
5. O genocídio em Gaza não é um episódio único, melhor compreendido como produto de circunstâncias excepcionais relacionadas ao conflito israelense-palestino e ao caráter inerentemente reacionário do projeto sionista e de sua ideologia nacionalista racialista e xenófoba. Esses últimos elementos desempenham certamente um papel significativo nas ações do regime israelense. Porém, a ferocidade desenfreada da guerra atual, levada a cabo com o apoio total de seus financiadores e fornecedores de armas imperialistas, pode ser compreendida e explicada somente no contexto do colapso do sistema imperialista mundial e do Estado nacional.
6. O “erro” fundamental dos estrategistas do imperialismo americano após a dissolução da União Soviética foi que o evento foi explicado em termos puramente ideológicos, ou seja, como o triunfo do “livre mercado” capitalista sobre a “ditadura” socialista. Porém, essa explicação, baseada na falsa identificação do stalinismo com o socialismo, ocultou a causa real do colapso da União Soviética e suas implicações para o desenvolvimento futuro do imperialismo americano e mundial.
7. Apesar de suas trágicas consequências, a dissolução da URSS confirmou a crítica essencial marxista-trotskista da política stalinista do “socialismo em um só país”. Conforme Trotsky previu, a utopia nacionalista reacionária de um Estado socialista isolado foi vítima da realidade da economia mundial.
8. O fim da URSS proporcionou aos Estados Unidos uma vantagem de curto prazo sobre seus rivais, que seus propagandistas apelidaram de “momento unipolar”. Porém, a contradição fundamental que levou às duas guerras mundiais no século XX – o conflito entre a realidade objetiva de uma economia mundial altamente integrada e a persistência do obsoleto sistema de Estados nacionais – não foi resolvida com o fim da URSS e de seus regimes satélites no Leste Europeu.
9. Os Estados Unidos buscaram explorar sua vantagem geopolítica para alcançar um nível de dominação global que lhe havia sido negado após a Segunda Guerra Mundial, como consequência do papel decisivo desempenhado pela União Soviética na derrota da Alemanha nazista e da onda de massivos movimentos anticoloniais pós-Segunda Guerra Mundial. Washington se convenceu de que poderia finalmente reorganizar a economia mundial sob seu controle por meio de seu poder militar. O especialista favorito do imperialismo americano, Thomas Friedman, do New York Times, proclamou em 1999 que “o punho oculto que mantém o mundo seguro para as tecnologias do Vale do Silício chama-se Exército, Força Aérea, Marinha e Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos...”[1]
10. A série interminável de guerras lançadas pelos Estados Unidos – nos Bálcãs, no Oriente Médio e na Ásia Central – foi uma tentativa desesperada de manter sua posição dominante, apesar de seu declínio econômico geral. O Comitê Internacional (CIQI) explicou a motivação para a invasão do Iraque em 2003 e previu o fracasso de seu projeto hegemônico subjacente:
O lançamento de uma guerra agressiva contra o Iraque representa uma tentativa final e culminante de resolver, com base no imperialismo, o problema histórico mundial da contradição entre o caráter global das forças produtivas e o arcaico sistema de Estados nacionais. Os Estados Unidos propõem superar o problema estabelecendo-se como o superestado nacional, funcionando como o árbitro final do destino do mundo – decidindo como os recursos do mundo serão alocados, após tomar para si a sua maior parte. Porém, esse tipo de solução imperialista para as contradições subjacentes do capitalismo mundial, que era totalmente reacionária em 1914, apenas piorou com o tempo. De fato, a grande escala do desenvolvimento econômico mundial no decorrer do século XX confere a esse projeto imperialista um elemento de loucura. Qualquer tentativa de estabelecer a supremacia de um único Estado nacional é incompatível com o extraordinário nível de integração econômica internacional. O caráter profundamente reacionário de tal projeto é expresso nos métodos bárbaros necessários para sua realização.[2]
11. O genocídio em Gaza simboliza os “métodos bárbaros” decorrentes do esforço cada vez mais desesperado e sitiado dos Estados Unidos e de seus aliados da OTAN para sustentar sua posição dominante diante do desafio à sua hegemonia pela China e por Estados nacionais inconformados cujos interesses entram em conflito com a ordem imperialista “baseada em regras” de Washington. O massacre dos palestinos está ocorrendo em meio à sangrenta guerra por procuração entre os EUA e a OTAN contra a Rússia, que já custou, desde seu início em fevereiro de 2022, cerca de meio milhão de vidas ucranianas e pelo menos 100 mil vidas russas.
12. Assim como a guerra em Gaza normalizou o genocídio como um instrumento aceitável da política imperialista, a escalada implacável da guerra entre os EUA e a OTAN contra a Rússia foi acompanhada pela aceitação de um alto nível de possibilidade, até mesmo de probabilidade, de que o conflito possa levar ao uso de armas nucleares táticas e estratégicas. O governo Biden regularmente aplica sanções e dirige ataques militares contra recursos e territórios russos que teriam sido descartados durante a Guerra Fria por incitarem retaliação nuclear. Cruzando repetidamente as “linhas vermelhas”, o governo Biden e seus governos aliados da OTAN afirmaram que sua conduta de operações militares não será restringida pelo risco da guerra nuclear.
13. Apesar de estar destruindo a Ucrânia, o imperialismo dos EUA e da OTAN não conseguiu até agora alcançar a vitória no campo de batalha. A sua tão alardeada “ofensiva de primavera” em meados de 2023 terminou em um desastre. Nos últimos dias de 2023, o regime ucraniano realizou uma escalada significativa da guerra ao lançar um ataque com mísseis em solo russo, matando pelo menos 22 pessoas na cidade de Belgorod. A Rússia respondeu com uma nova onda de ataques com mísseis contra a Ucrânia, que o governo Biden está explorando para pressionar suas demandas por contínuo financiamento sem limite da guerra por procuração.
14. Em última análise, a instigação dos EUA e da OTAN para a guerra por procuração na Ucrânia marca nada menos do que a preparação para uma guerra dos EUA contra a China, transformando cada parte do mundo em uma esfera específica de operações. Há quase 20 anos, em 2006, o Comitê Internacional fez uma série de perguntas relacionadas às políticas globais dos Estados Unidos, entre as quais as seguintes:
Estarão os Estados Unidos preparados para recuar de suas aspirações hegemônicas e aceitar uma distribuição mais igualitária de poder global entre os Estados? Estarão dispostos a ceder terreno, com base em concessões, para concorrentes econômicos e militares em potencial, seja na Europa ou na Ásia? Os Estados Unidos acomodarão de forma graciosa e pacífica a influência crescente da China?[3]
Em resposta a essas perguntas, o CIQI respondeu que aqueles que responderiam afirmativamente “estão apostando pesadamente contra as lições da história”.
15. Hoje, as respostas a essas perguntas não são de caráter especulativo. A guerra entre os Estados Unidos e a China é vista não como uma possibilidade, mas como uma inevitabilidade. Esse consenso dentro do establishment da política externa de Washington é resumido em um artigo publicado na nova edição de janeiro-fevereiro de 2024 da Foreign Affairs. O título é sinistro: “The Big One: Preparing for a Long War With China” (A grande guerra: Preparando-se para uma longa guerra com a China). O seu autor é Andrew J. Krepinevich, Jr., membro sênior do instituto Hudson, um importante think tank imperialista.
16. O artigo pressupõe que os Estados Unidos e a China irão entrar em guerra. Esse é um fato dado como certo, sobre o qual não se deve perder tempo debatendo. As questões reais estão relacionadas a como e onde a guerra irá começar – no Estreito de Taiwan, na Península da Coreia, ao longo da fronteira sino-indiana ou no Sul da Ásia – e se a guerra será nuclear. Krepinevich afirmou:
Uma vez deflagrada a guerra, tanto a China quanto os Estados Unidos teriam de enfrentar os perigos representados por seus arsenais nucleares. Assim como em tempos de paz, os dois lados manteriam um forte interesse em evitar uma escalada catastrófica. Mesmo assim, no calor da guerra, essa possibilidade não pode ser eliminada. Ambos enfrentariam o desafio de encontrar o ponto ideal no qual poderiam empregar a força para obter uma vantagem sem causar uma guerra total. Consequentemente, os líderes das duas grandes potências precisariam exercer um alto grau de autocontrole.
Para manter a guerra limitada, tanto Washington quanto Pequim precisariam reconhecer as linhas vermelhas de cada um – ações específicas vistas como uma escalada e que poderiam desencadear contra-escaladas.[4]
17. É nada menos que ilusório apostar a esperança de evitar o armagedom nuclear na capacidade de limitar a escalada em meio a um conflito existencial do qual depende o destino dos combatentes. De qualquer forma, a guerra por procuração entre os EUA e a OTAN contra a Rússia já estabeleceu que o imperialismo americano não será dissuadido pela ameaça de retaliação nuclear e irá cruzar toda e qualquer “linha vermelha” para atingir seus objetivos.
18. Krepinevich reconhece que a inevitável guerra entre os EUA e a China, mesmo sem o uso de armas nucleares, terá consequências catastróficas para toda a humanidade. Ele escreve:
Mesmo que os dois lados evitassem uma catástrofe nuclear e mesmo que os territórios dos Estados Unidos e de seus principais parceiros de coalizão permanecessem parcialmente intocadas, a escala e o escopo da destruição provavelmente excederiam muito qualquer coisa que o povo americano e os de seus aliados tenham vivido.[5]
19. A conclusão a que Krepinevich chega não é que o cataclismo militar deva ser evitado a todo custo, mas que a “capacidade da coalizão liderada pelos Estados Unidos de manter o apoio popular ao esforço de guerra, juntamente com a disposição de se sacrificar, seria crucial para seu sucesso”.[6]
20. A classe trabalhadora americana e internacional deve se opor a esse terrível cenário imperialista de inevitável guerra. Os trabalhadores nos centros imperialistas da América do Norte, Europa, Ásia, Austrália e Nova Zelândia não possuem absolutamente nenhum interesse em defender os interesses geopolíticos e econômicos globais de sua classe dominante imperialista corporativa e financeira, enlouquecida pelo poder. Os trabalhadores da Rússia, da China e de outras grandes potências regionais capitalistas – Brasil, Argentina, Egito, Estados do Golfo, Turquia, Nigéria, África do Sul, Índia, Indonésia, para citar apenas os mais significativos – também não devem atribuir nenhum caráter progressivo aos esforços reacionários para reorganizar a geopolítica mundial com base na perspectiva utópica da multipolaridade.
21. O fato de que o imperialismo americano instigou a guerra entre Rússia e Ucrânia não justifica, do ponto de vista dos interesses da classe trabalhadora russa e internacional, a decisão do governo Putin de invadir a Ucrânia. A resposta do governo Putin às provocações do imperialismo americano e europeu foi determinada não por considerações abstratamente definidas de “defesa nacional”, mas pelos interesses de classe da classe dominante oligárquica-capitalista parasitária que surgiu do desmonte da União Soviética e da privatização e roubo de seus recursos estatizados.
22. Nos anos que antecederam a dissolução da URSS, o conflito político dentro do aparato burocrático dominante se desenvolveu ao longo de linhas nacionais e étnicas. Essa tendência reacionária foi preparada e facilitada pelo repúdio de Stalin ao internacionalismo proletário e pela promoção do nacionalismo russo sob o disfarce de um patriotismo soviético chauvinista. Após o desmonte da União Soviética, os conflitos já existentes entre os círculos burocráticos nacionalistas – dos quais o russo e o ucraniano eram os mais poderosos – evoluíram rapidamente para uma luta aberta por matérias-primas, mercados e vantagens territoriais entre as novas elites dominantes capitalistas nacionais. Em outubro de 1991, menos de três meses antes da dissolução da União Soviética, o Comitê Internacional alertou:
Nas repúblicas, os nacionalistas proclamam que a solução para todos os problemas está na criação de novos Estados “independentes”. Permita-nos perguntar: independentes de quem? Ao declarar “independência” de Moscou, os nacionalistas não podem fazer nada além de colocar todas as decisões vitais relacionadas ao futuro de seus novos Estados nas mãos da Alemanha, Reino Unido, França, Japão e Estados Unidos.[7]
23. A atual guerra é a confirmação do alerta dado 30 anos atrás pelo Comitê Internacional. A luta contra a guerra entre os EUA e a OTAN deve ser conduzida não por meio da adaptação ao regime de Putin, mas em oposição implacável à sua agenda nacionalista-capitalista reacionária. A política antiguerra dos trabalhadores russos e ucranianos deve se basear na união de todas as seções da classe trabalhadora da antiga União Soviética contra as novas elites capitalistas. A política internacionalista defendida por Lenin e pelos bolcheviques durante a Primeira Guerra Mundial, de oposição intransigente à defesa de seus Estados capitalistas nacionais, deve ser adotada pelos trabalhadores da Rússia (contra o regime de Putin) e da Ucrânia (contra o regime de Zelinsky) hoje.
24. Os mesmos princípios fundamentais do internacionalismo socialista determinam a atitude do Comitê Internacional em relação ao conflito entre o imperialismo dos EUA e a China. Os Estados Unidos se esforçam para limitar o desenvolvimento econômico da China, restringir seu acesso a recursos e tecnologias essenciais e bloquear a expansão de sua influência global. A China tenta combater a pressão implacável exercida pelo imperialismo americano por meio da reestruturação das instituições geopolíticas e econômicas vigentes, nas quais o dólar americano funciona como o pilar do comércio mundial e das transações financeiras. Porém, essa política, apesar das tentativas da China de dar a ela um verniz progressivo e até mesmo altruísta (por exemplo, por meio da promoção da iniciativa “Cinturão e Rota”), se desenvolve sobre uma base capitalista e possui como objetivo nada mais do que a reorganização do equilíbrio de poder global existente.
25. A eclosão de uma guerra não pode ser evitada contrapondo à hegemonia do imperialismo americano uma nova coalizão multipolar de Estados capitalistas. A luta contra a guerra imperialista não pode ser alcançada por meio de uma reestruturação do sistema de Estados nacionais, mas somente com base em sua destruição. Conforme Rosa Luxemburgo insistiu às vésperas da Primeira Guerra Mundial, a classe trabalhadora “deve chegar à conclusão de que o imperialismo, a guerra, a pilhagem de países, o a negociação por povos, a violação da lei e a política de violência só podem ser combatidos por meio da luta contra o capitalismo, por meio da revolução social contra o genocídio global”.[8]
Thomas L. Friedman, “A Manifesto for the Fast World,” New York Times Magazine, 28 de março de 1999
A Quarter Century of War: The U.S. Drive for Global Hegemony 1990-2016, David North (Mehring Books: Oak Park, MI), p. 277
Ibid, pp. 368-69
Foreign Affairs, janeiro-fevereiro 2024, pp. 111-12
Ibid, p. 117
Ibid, p. 118
“After the August Putsch: Soviet Union at the Crossroads,” David North, In: The Fourth International, Volume 19, n. 1, Fall-Winter 1992, p. 110.
“Petty-Bourgeois or Proletarian World Policy?” In: Discovering Imperialism: Social Democracy to World War I, traduzido e editado por Richard B. Day e Daniel Gaido (Chicago: Haymarket Books, 2012), p. 470