Publicado originalmente em 18 de dezembro de 2024
Há uma dicotomia extraordinária na economia mundial que não tem paralelo, exceto nos “loucos anos 20” do século passado, quando um boom nos EUA levou ao crash do mercado de ações em 1929 e ao início da Grande Depressão.
Enquanto o resto do mundo - todas as principais economias - lutam para registrar até mesmo uma taxa de crescimento positiva, sem falar em expansão consistente, os EUA estão em meio a um boom financeiro, à medida que o dinheiro do resto do mundo entra em seu mercado de ações e em seu sistema financeiro.
Esse fenômeno, que aumentou consideravelmente desde o início da pandemia, foi acelerado pelo entusiasmo financeiro em torno do desenvolvimento da inteligência artificial (IA), refletido na ascensão da empresa de IA Nvidia, que passou de uma posição secundária entre as ações de tecnologia para a segunda maior empresa dos EUA em capitalização de mercado.
Isso se intensificou com a eleição de Trump para a presidência dos EUA, colocando oligarcas financeiros no controle de áreas importantes de seu governo, comprometendo-se com cortes nos impostos corporativos e virtualmente desmantelamento o que resta das regulamentações financeiras.
Seria necessário mais espaço do que o disponível aqui para detalhar todas as indicações da queda crescente na economia global. Basta apontar algumas expressões marcantes desse processo.
Na Alemanha, a terceira maior economia do mundo e outrora a potência da Europa, uma onda de demissões está em andamento no setor de manufatura, a espinha dorsal de sua economia. Não se trata de uma desaceleração conjuntural, da qual se pode esperar uma “recuperação” no decorrer do ciclo de negócios, mas da desintegração de suas próprias bases.
As manchetes da imprensa financeira fazem a seguinte pergunta: “O modelo de negócios alemão está quebrado?” A resposta que está sendo dada cada vez mais é sim.
Em novembro, o Financial Times (FT) citou os comentários do economista-chefe do Deutsche Bank, Robin Winkler, de que a queda na produção industrial foi “a desaceleração mais acentuada” na história da Alemanha no pós-guerra.
Em setembro do ano passado, Siegfried Russwurm, presidente da Federação da Indústria Alemã, advertiu: “O modelo de negócios da Alemanha está em grave perigo - não em um futuro próximo, mas aqui e agora”. Segundo ele, até o ano de 2030, um quinto da produção industrial da Alemanha poderá desaparecer e “a desindustrialização é um risco real”.
As demissões em massa no setor siderúrgico e automobilístico, com a ameaça de fechamento de três fábricas da VW, atraíram a atenção internacional. Mas a crise não para por aí. A produção química, na qual a Alemanha é líder mundial desde as últimas décadas do século XIX, caiu 18% em relação aos níveis de 2018.
Um relatório do Bundesbank da Alemanha, publicado na semana passada, reduziu sua previsão de crescimento em 2025 de 1% para quase zero e alertou que uma guerra tarifária nos EUA poderia levar o país à recessão.
O banco central afirmou que, de acordo com as premissas atuais, a Alemanha cresceria apenas 0,1% no próximo ano, mas se Trump seguir com suas ameaças de impor uma tarifa de 10% sobre os produtos europeus e de 60% sobre as exportações chinesas para os EUA, o PIB alemão poderia cair 0,6 ponto percentual.
De forma significativa, o presidente do Bundesbank, Joachim Nagel, que insistiu em setembro que “a Alemanha não está em declínio”, observou em seus comentários sobre o último relatório: “A economia alemã está lutando não apenas com persistentes ventos contrários cíclicos, mas também com problemas estruturais”.
Os dados mais recentes da China, a segunda maior economia do mundo e a principal fonte de crescimento econômico global desde a crise financeira global de 2008-09, mostram que ela está lutando para atingir sua meta oficial de crescimento de “cerca de 5%” este ano - a menor em mais de três décadas - e o crescimento pode cair ainda mais no próximo ano.
Os alarmes estão soando em Pequim e cada vez mais alto. Os números divulgados no início desta semana mostraram que os gastos com consumo cresceram apenas 3% no ano até novembro, abaixo das previsões de um aumento de 4,6% e do aumento de 4,8% no mês anterior.
Em sua Conferência Central de Trabalho Econômico anual, na semana passada, a liderança do Partido Comunista da China pediu esforços “vigorosos” para impulsionar o consumo, e seu relatório listou a questão como a principal prioridade, significativamente à frente da defesa para desenvolver “novas forças produtivas”, que tem sido o pilar central do programa econômico apresentado pelo presidente Xi Jinping.
No início deste mês, o governo solicitou uma mudança na postura da política monetária de “prudente” para “moderadamente frouxa” - a primeira vez que essa linguagem foi usada desde a crise de 2008 - em uma tentativa de impulsionar a economia.
O Japão está fora do cenário como centro de crescimento global há décadas e tem lutado contra pressões deflacionárias persistentes, com sua taxa de crescimento ficando entre 1% e 2%, na melhor das hipóteses. Seu declínio foi expresso no início deste ano, quando perdeu a posição de terceira maior economia do mundo para a Alemanha e foi rebaixada para o quarto lugar.
Poderíamos citar também o caso do Reino Unido ou de economias médias, como a Austrália, onde, se não fossem os gastos do governo, a economia estaria regredindo, e o PIB per capita diminuiu por sete trimestres consecutivos.
Por outro lado, a economia dos EUA parece estar crescendo rapidamente, à medida que o dinheiro flui para seus mercados financeiros. Embora o sentimento predominante seja o de que os EUA continuarão a avançar, estão sendo feitos alertas.
O comentarista regular do FT, Ruchir Sharma, presidente da Rockefeller International, em um artigo recente intitulado “A mãe de todas as bolhas”, detalhou a extraordinária entrada de dinheiro em Wall Street e observou o aumento do “excepcionalismo americano” nos círculos financeiros.
Os investidores globais, escreveu ele, “estão investindo mais capital em um único país do que nunca na história moderna”, o que faz com que os EUA “respondam por quase 70% do principal índice do mercado de ações global, em comparação com 30% na década de 1980”. O divórcio entre o setor financeiro e a economia real subjacente é destacado pelo fato de que a participação dos EUA na economia global é de 27%.
O poder de atração dos EUA na dívida global e nos mercados privados está mais forte do que nunca. Até o momento, em 2024, “os estrangeiros despejaram capital na dívida dos EUA a uma taxa média anual de US$ 1 trilhão, quase o dobro dos fluxos para a zona do euro”, com os EUA atraindo 70% dos fluxos para o mercado de investimentos privados de US$ 13 trilhões.
Sharma disse que falar sobre bolhas de tecnologia ou IA obscureceu o quadro mais amplo. “Dominando completamente o espaço mental dos investidores globais, os Estados Unidos são superproprietários [o que significa que todos que desejam manter uma ação já o fizeram], supervalorizados e superestimados em um grau nunca visto antes.”
Em uma coluna posterior, ele observou que havia recebido alguma resistência em resposta à sua avaliação inicial, com praticamente todos os analistas de Wall Street insistindo que as ações dos EUA continuariam a subir. Porém, baseando-se claramente na experiência histórica, ele observou que “todo esse entusiasmo só tende a confirmar que a bolha está em um estágio muito avançado”.
A deficiência da economia dos EUA, observou ele, é seu “aumento acentuado do vício em dívidas” e que agora eram necessários quase US$ 2 de dívida adicional para gerar mais US$ 1 de PIB, um aumento de 50% nos últimos cinco anos.
“Se qualquer outro país estivesse gastando dessa forma, os investidores estariam fugindo, mas, por enquanto, eles acham que os Estados Unidos podem se safar de qualquer coisa, já que são a principal economia do mundo e emissores da moeda de reserva”.
Outro fator que alimenta a bolha americana é a crença, pelo menos em alguns setores dos mercados financeiros, de que a guerra tarifária de Trump, especialmente contra a China, terá efeitos benéficos.
Stephen Roach, analista de longa data da China e ex-diretor do Morgan Stanley Asia, descreveu algumas das realidades subjacentes do relacionamento econômico entre os EUA e a China. Ele começou apontando a resposta de Pequim às últimas medidas dos EUA com a proibição das exportações de minerais essenciais. Isso foi um “lembrete de que a retaliação é o combustível de alta octanagem da escalada de conflitos”.
Ele disse que havia uma visão equivocada nos círculos políticos dos EUA de que o relacionamento com a China era unilateral, deixando de fora a outra metade da equação.
“Os Estados Unidos também dependem muito dos produtos chineses de baixo custo para pagar as contas dos consumidores com renda limitada; os Estados Unidos precisam da poupança excedente chinesa para ajudar a preencher seu vazio de poupança doméstica; e os produtores americanos dependem da China como o terceiro maior mercado de exportação dos Estados Unidos. Essa dependência mútua significa que os EUA dependem da China, assim como a China depende dos Estados Unidos”.
Ele apontou para a arma financeira chinesa definitiva - seus títulos do Tesouro dos EUA, a dívida do governo, no valor de mais de US$ 1 trilhão, incluindo US$ 772 bilhões da República Popular e US$ 233 bilhões provenientes de Hong Kong.
Se a China começasse a retirar seus títulos ou até mesmo deixasse de comparecer aos leilões de dívida do Tesouro, “isso seria devastador para a economia americana, propensa a déficits, e provocaria uma devastação no mercado de títulos dos EUA, com danos colaterais nos mercados financeiros mundiais”.
A opinião predominante entre os “americanos arrogantes” é que a China não “ousaria flertar com essa opção nuclear” porque os danos seriam muito grandes. Mas, embora esse cenário possa parecer rebuscado, porque produziria um colapso financeiro, seria “imprudente descartar as consequências do ‘risco de cauda’ de um adversário encurralado”.
Como observamos no início, o único paralelo com a situação atual são os “loucos anos 20”. Há uma percepção de que a quebra de Wall Street, que desencadeou a Grande Depressão, simplesmente surgiu do nada.
Na verdade, havia sinais crescentes do que estava por vir antes dos eventos de outubro de 1929. Entre 1927 e 1928, havia indicações claras de um colapso em desenvolvimento, especialmente na Alemanha, que levou a uma série de crises políticas.
A catástrofe financeira que se seguiu - depressão, desemprego em massa, fascismo, ditadura e, por fim, guerra mundial - impôs a necessidade objetiva da revolução socialista mundial como a única resposta à barbárie desencadeada pela crise do capitalismo.
A classe trabalhadora, por causa das traições de sua direção, dos partidos comunistas stalinistas e dos partidos da socialdemocracia, não conseguiu realizar essa tarefa historicamente necessária.
A história, é claro, não se repete, mas, como comentou Mark Twain, ela tende a rimar. E tudo indica que a crise do capitalismo, sua agonia de morte, está em um estágio ainda mais avançado do que naquela época.
Portanto, neste momento, a questão decisiva é a construção do Comitê Internacional da Quarta Internacional como o partido mundial da revolução socialista para fornecer a direção necessária nas lutas de classe maciças colocadas imediatamente na ordem do dia pelo aprofundamento do colapso econômico da ordem econômica capitalista engolindo o mundo e na qual não haverá “excepcionalismo americano”.