Na terça-feira, a Procuradoria Geral da República (PGR) denunciou o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros 33 por tentar dar um golpe de Estado e abolir violentamente o Estado democrático de direito em uma conspiração que levou à insurreição fascista de 8 de janeiro de 2023 em Brasília.
Uma vez que a denúncia for aceita pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o que é esperado que aconteça dentro das próximas semanas, os acusados se tornam réus de um processo criminal e podem receber sentenças de até 30 anos de prisão.
A denúncia contra Bolsonaro e seus cúmplices se baseia no vasto corpo de evidências reunido no relatório de quase 900 páginas da Polícia Federal (PF), publicado em novembro do ano passado.
As evidências compõem um retrato sinistro da atuação da gangue militar-fascista que encabeçava o Estado brasileiro sob o governo Bolsonaro, cujo profundo enraizamento nas Forças Armadas é impossível de esconder. Entre os acusados pela PGR estão 23 militares, incluindo sete generais e ex-comandantes das Forças Armadas.
A PGR concluiu que este grupo é responsável por liderar de forma sistemática uma “trama conspiratória armada e executada contra as instituições democráticas”.
A conspiração para instaurar uma ditadura no Brasil começou bem antes das eleições de 2022, como o relatório aponta. Seu foco inicial era abolir a divisão entre poderes, estabelecer o poder absoluto do Executivo e desacreditar o sistema eleitoral brasileiro.
Parte substancial das evidências levantadas pela PF partiu da delação premiada do Coronel Mauro Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro e responsável por coordenar as ações golpistas entre o Planalto e os militares.
Cid esclareceu que, após a derrota de Bolsonaro nas eleições de 2022, o ex-presidente e seus aliados iniciaram um plano sistemático para invalidar as eleições, estabelecer um Estado de exceção que colocasse o poder nas mãos dos militares e preparar as bases legais para a instauração de uma ditadura.
Esses planos – descritos em detalhes em documentos apreendidos com os acusados – incluíam o assassinato do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva do Partido dos Trabalhadores (PT), seu vice-presidente, Geraldo Alckmin, e o ministro Alexandre de Moraes, então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Um documento intitulado “Punhal Verde e Amarelo”, redigido pelo General Mario Fernandes, um dos principais conspiradores do golpe, levantava diferentes possibilidades para dar cabo às execuções, incluindo o uso de armas de fogo, explosivos ou envenenamento. O documento foi apresentado e aprovado pelo candidato a vice-presidente de Bolsonaro, General Walter Braga Netto, em 12 de novembro de 2022.
Em 15 de dezembro uma tentativa de executar o plano de assassinato de Moraes foi iniciada e abortada. A operação foi conduzida por membros das forças especiais do Exército, os chamados “Kids Pretos”, e diretamente financiada por Braga Netto.
Este e outros episódios violentos – incluindo uma onda de ataques a prédios públicos e veículos em Brasília em 12 de dezembro, durante o evento de oficialização da vitória de Lula – e as manifestações de apoiadores de Bolsonaro em frente aos quartéis tinham o objetivo declarado de servir como “eventos disparadores” para a decretação de um Estado de exceção que transferisse o poder aos militares.
Apesar de essas ações não terem provocado os “eventos disparadores a partir da ação das Forças de Segurança”, mencionados pelo General Mario Fernandes em uma mensagem ao comandante do Exército, General Freire Gomes, o ataque às sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023, enquadram-se perfeitamente dentro desses objetivos.
Ao mesmo tempo em que organizavam estas ações violentas, Bolsonaro e seus cúmplices atuaram sistematicamente para pressionar os elementos vacilantes no comando das Forças Armadas a aderir ao golpe, inclusive pela incitação de uma sublevação dos baixos oficiais.
No período entre a derrota eleitoral de Bolsonaro, em outubro, e o final de dezembro, o ex-presidente e seu ministro da Defesa, o General Paulo Sergio Nogueira de Oliveira, realizaram múltiplas reuniões com os comandantes das Forças Armadas em que discutiram detalhadamente seus planos de golpe de Estado. O fato foi confirmado pelos próprios comandantes do Exército e da Força Aérea à PF.
Bolsonaro também se reuniu privadamente com o General Theophilo de Oliveira, comandante da mais crítica divisão do Exército, o Comando de Operações Terrestres (COTER), que disponibilizou suas tropas para a realização do golpe.
Entre as reuniões de Bolsonaro com os comandantes, as Forças Armadas publicaram um relatório falso sobre sua apuração das urnas eletrônicas, fabricando a conclusão de que o processo eleitoral esteve sujeito a fraude. Dois dias depois, em 11 de novembro, os comandantes emitiram uma nota conjunta promovendo os atos fascistas que clamavam por um golpe militar como “manifestações populares”. Ameaçando autoridades que interferissem nessas manifestações, a nota reivindicava o “compromisso irrestrito e inabalável [das Forças Armadas] com o povo brasileiro” e seu papel histórico como um poder “moderador”.
Apesar de a denúncia da PGR identificar esses dois episódios, que envolvem todo o comando militar, como peças centrais do plano de golpe, a responsabilidade por eles é atribuída exclusivamente ao ex-presidente Bolsonaro. O único comandante militar acusado é o Almirante Almir Garnier, da Marinha, que insistiu até o último momento em consumar o golpe.
“É de ser observado”, conclui enganosamente o Procurador, “que o próprio Exército foi vítima da conspirata”.
O julgamento de Bolsonaro e a crise política brasileira
De acordo com a imprensa, o ministro Alexandre de Moraes e a Primeira Turma do STF trabalham agora por uma condução ágil do processo que permita sua conclusão antes do início do ano eleitoral de 2026.
O Partido dos Trabalhadores (PT), por sua vez, está atuando com o objetivo expresso de preservar o caráter “técnico” do julgamento dos conspiradores fascistas e evitar sua “politização”.
Essas esperanças são tanto irreais como reacionárias. Os crimes que estão diante da corte são de natureza absolutamente política e histórica. A tentativa de concluir esse processo, que se desenrolou por dois anos em sigilo, burocraticamente e pelas costas da população é uma expressão da imensa vulnerabilidade da democracia brasileira.
A atitude pusilânime do PT diante do julgamento do golpe, que mirava diretamente seu governo e suas principais lideranças, é consistente com sua atuação ao longo de todo o processo.
No período crítico entre o resultado das eleições e a insurreição de 8 de janeiro em Brasília, enquanto Bolsonaro e sua gangue militar-fascista articulavam obstinadamente uma “virada de mesa”, o PT tentava apaziguar e negociar com as forças envolvidas no plano de golpe e convencer a população brasileira de que a crise política estava resolvida.
A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, dissuadiu enfaticamente confrontos que emergiram espontaneamente de operários contra os fascistas que bloqueavam vias. Hoffmann alertou os trabalhadores de que “quem é o presidente do Brasil nesse momento é Jair Messias Bolsonaro... Ele tem que resolver isso”.
Nos últimos dois anos, Lula e o PT buscaram firmar suas relações com os militares canalizando recursos crescentes às Forças Armadas, promovendo uma ideologia nacionalista de direita e atuando para reabilitar a imagem pública dos militares. Isso incluiu um esforço crucial do governo Lula para apagar a memória sobre a ditadura militar de 1964-85 e seus crimes históricos, que têm continuidade na conspiração golpista recente.
O retorno incontestável da presença militar-fascista na política brasileira é uma expressão de como nenhuma das questões fundamentais que levaram ao golpe patrocinado pela CIA em 1964 e às duas décadas de ditadura subsequentes foram resolvidas.
O regime civil consolidado na Constituição de 1988 preservou os pilares da dominação violenta da burguesia inabalados e de prontidão para uma nova virada autoritária. Os comandantes militares assassinos jamais foram punidos e continuaram a educar novas gerações de oficiais com base em sua ideologia anticomunista raivosa e no culto à “Revolução de 1964”.
Jair Bolsonaro é o produto mais autêntico dessas condições. Um jovem oficial no período da transição de regime, desenvolveu sua carreira parlamentar como defensor estridente dos crimes mais brutais da ditadura e como um porta-voz público da ideologia fascista que por décadas restringiu-se aos quartéis.
A ascensão de Bolsonaro à presidência do Brasil em 2018 não foi um acidente. Ela marcou um retorno decisivo dos militares ao centro da política do país, impulsionado pela agudização das contradições sociais, que já não podiam mais ser contidas pelas ferramentas existentes de repressão da luta de classes, a principal delas o PT e seus sindicatos.
Enquanto o PT e a pseudoesquerda, completamente apartados e hostis aos interesses dos trabalhadores, moldam sua estratégia política sobre a necessidade de preservar as instituições apodrecidas do Estado capitalista burguês, os fascistas preparam agressivamente uma nova ofensiva pelo poder.
Em resposta ao cerco jurídico, as forças fascistas ligadas a Bolsonaro estão mobilizando seus apoiadores para tomar as ruas e reerguer as bandeiras que serviram à sua primeira investida golpista. Eles convocaram manifestações nacionais para 16 de março, reafirmando que as eleições de 2022 foram fraudadas e que eles enfrentam perseguição política de um regime “esquerdista” autoritário e ilegítimo.
Os fascistas brasileiros se sentem significativamente encorajados pelo retorno de Donald Trump à Casa Branca. A conspiração golpista no Brasil foi no sentido mais fundamental uma continuação política da tentativa de golpe orquestrada por Trump em 6 de janeiro de 2021. Bolsonaro e seus aliados coordenaram estreitamente sua atuação com o círculo político fascista de Trump e modelaram suas ações na estratégia política do golpe nos EUA e em suas lições.
O filho do ex-presidente, Eduardo Bolsonaro, que estava em Washington em janeiro de 2021 para estudar as lições do golpe fascista de Trump, está novamente nos Estados Unidos, onde os próximos passos dos fascistas brasileiros estão sendo decididos. Na semana passada, Eduardo postou no X a acusação de que o ex-presidente americano, Joe Biden, financiou uma fraude do processo eleitoral brasileiro em 2022 com dinheiro do USAID. Essa fabricação foi imediatamente endossada por Elon Musk.
Uma declaração política ainda mais significativa foi dada pelo próprio Trump. Ele respondeu à acusação de Bolsonaro e seus cúmplices abrindo um processo contra Moraes por meio do Trump Media & Technology Group ao lado da rede social fascista Rumble. O processo alega que Moraes viola a Primeira Emenda dos EUA ao exigir a suspensão de contas de apoiadores de Bolsonaro residentes nos EUA.
A acusação dos apoiadores de Bolsonaro de que o governo Biden financiou a eleição de Lula por meio de fraude eleitoral é uma completa mentira. Por outro lado, houve várias reportagens de que oficiais do Estado americano realizaram uma série de discussões com as lideranças militares brasileiras para dissuadir sua participação num golpe de Bolsonaro. Essas conversas não foram motivadas por qualquer espécie de agenda internacional de “esquerda” do governo Biden, mas pelo entendimento de que um golpe de Estado no maior país da América do Sul provocaria uma desestabilização prejudicial aos interesses do imperialismo americano na região.
A entrada do segundo governo Trump marca um giro brusco na política externa dos EUA, com a priorização do confronto contra a China como um eixo principal. Isso inclui a busca agressiva pelo domínio imperialista dos EUA sobre a América Latina e o combate à influência chinesa crescente na região.
As relações políticas entre Trump/Musk e Bolsonaro estão diretamente ligadas à busca desses objetivos. Bolsonaro recentemente declarou à Folha de São Paulo que, se eleito em 2026 – do que está legalmente impedido –, vai retirar o Brasil dos BRICS e permitir a instalação de uma base militar americana na tríplice fronteira do país como parte de um “acordo militar parrudo” com os EUA.
Em um discurso revelador na conferência da CPAC na quinta-feira, Eduardo Bolsonaro defendeu que seu pai está sendo judicialmente perseguido porque é “o único candidato capaz de derrotar a esquerda na eleição de 2026” e “se ele for mantido fora da disputa, o Brasil cairá completamente sob a influência da China”. Ele complementou: “Com mais de 200 milhões de pessoas, a maior economia da América Latina e uma massa de terra quase do tamanho dos Estados Unidos, sua importância geopolítica e econômica é inegável”.
Muito mais que uma guerra entre o imperialismo americano e seu rival estratégico, China, o que está por trás da ameaça crescente de um golpe fascista patrocinado pelos EUA no Brasil é uma guerra do capitalismo contra a classe trabalhadora mundial. O Brasil, com uma classe trabalhadora massivamente e globalmente interconectada, representa um bastião decisivo da revolução socialista mundial.
A oligarquia capitalista reconhece que sua manutenção no poder só pode ser garantida por meio de ataques cada vez maiores aos direitos e às condições básicas da classe trabalhadora. Isso coloca as lutas revolucionárias na ordem do dia no Brasil, em toda a América Latina e nos próprios EUA.
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